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Auto‐responsabilidade e empatia: A liberdade em busca da solidariedade
Da promessa emancipadora do liberalismo à crise espiritual da modernidade, e o caminho ético para a reconciliação do humano
Introdução
A história moderna da liberdade é uma história de tensões. Desde o nascimento do liberalismo, a humanidade ocidental tem procurado conciliar dois impulsos fundamentais: o desejo de autonomia e o dever de justiça. A noção de “auto‐responsabilidade” atravessa essas transformações como um espelho moral. Aparentemente nobre, a palavra significa hoje tanto emancipação como isolamento, tanto maturidade como indiferença.
O objetivo deste ensaio é compreender essa ambiguidade, seguindo o percurso histórico e espiritual que liga a origem libertadora do liberalismo à sua degradação moral contemporânea. Mostra-se que, se o liberalismo foi a porta pela qual entraram os direitos individuais e a dignidade cívica, também foi no seu interior que se semearam as raízes do individualismo competitivo. Da exploração industrial à afirmação dos direitos humanos, e do esvaziamento espiritual ao ressurgimento da empatia, desenha-se um arco de aprendizagem ética que continua inacabado.
1. O liberalismo e a promessa da liberdade
O liberalismo nasceu, no século XVIII, como reação à opressão do absolutismo e à rigidez de ordens sociais herdadas. A sua ideia central era simples e revolucionária: cada ser humano possui direitos inalienáveis que antecedem o poder político. Essa revolução filosófica inaugurou a noção moderna de indivíduo livre, dotado de razão e de consciência.
John Locke, Montesquieu e, mais tarde, John Stuart Mill defendiam que a limitação do poder era condição da dignidade e que a responsabilidade moral só podia existir em liberdade. Essa visão desencadeou mudanças históricas de vasto alcance: o fim da servidão e da escravidão, a afirmação da igualdade formal, o reconhecimento da liberdade de expressão, de religião e de associação.1
Foi nesse contexto que a auto‐responsabilidade ganhou prestígio ético. Ser livre passou a significar ser autor da própria vida, capaz de responder pelos próprios atos e de participar na esfera pública. O indivíduo tornava‐se sujeito moral e político. A maturidade pessoal aparecia vinculada à autonomia, e esta, por sua vez, associava‐se à confiança na razão e no mérito.
Contudo, esta emancipação nascente ainda coexistia com uma brutal desigualdade social. O liberalismo libertava o cidadão perante o Estado, mas deixava o trabalhador entregue à força do mercado. A promessa universal de liberdade nascia sob o peso da exclusão material.
2. O capitalismo e a crise espiritual da liberdade
O advento do capitalismo industrial transformou a paisagem do liberalismo. A liberdade tornou‐se, progressivamente, um princípio económico mais do que moral. O direito de propriedade e a livre iniciativa, que por princípio, garantiam a autonomia, converteram‐se em mecanismos de concentração e de exploração.
As primeiras sociedades industriais europeias ilustram essa contradição: jornadas exaustivas, trabalho infantil e pobreza urbana coexistiam com o ideal de progresso e mérito. A liberdade, formalmente conquistada, materializou‐se como dependência. Nas palavras de Karl Polanyi, o mercado deixou de ser instrumento e tornou‐se estrutura total.
Mas o que perverteu esse horizonte, não foi apenas a desigualdade económica – foi a perda de uma vivência espiritual que dava sentido à liberdade. No liberalismo original havia uma confiança filosófica no valor interior de cada pessoa; essa confiança tinha raiz não apenas racional, mas também espiritual. A liberdade implicava consciência e comunhão. Quando o capitalismo dissolveu essa base, a liberdade foi privatizada: deixou de ser vocação moral para se tornar condição de competição.
Como Max Weber analisou em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, a disciplina do trabalho, originalmente associada a uma intenção religiosa profunda, foi sendo desagregada da sua interioridade espiritual.2 A fé que inspirava a conduta transformou‐se em cálculo, o sentido em desempenho. O capitalismo absorveu o ethos da responsabilidade e restituiu‐o como exigência de produtividade.
3. Da exploração à conquista dos direitos sociais
Apesar dessas contradições, o liberalismo abriu um caminho de transformação ética que a própria história do trabalho veio expandir. No século XIX, as condições de exploração industrial desencadearam movimentos sociais inéditos. A luta operária e o pensamento cristão‐social confrontaram o liberalismo com as suas insuficiências e obrigaram-no a reconhecer que a liberdade sem justiça é vazio moral.
A partir dessa tensão, emergem as primeiras conquistas de direitos.3 O direito ao trabalho digno, à instrução, ao descanso e à assistência transforma-se em extensão natural da dignidade humana. Essa evolução dá origem a uma nova etapa – o liberalismo social e democrático – que integra a herança individualista com os ideais comunitários.
A espiritualidade, longamente marginalizada, começa então a regressar sob formas novas. Movimentos como o personalismo de Emmanuel Mounier, a doutrina social da Igreja e a teologia da libertação associaram liberdade à solidariedade e resgataram o sentido espiritual do político.4 O humano volta a ser visto como unidade de corpo e consciência, indivíduo e relação.
Essas transformações culminaram no reconhecimento dos direitos sociais como segunda geração dos direitos humanos. A liberdade, sem as condições materiais da dignidade, revelou-se incompleta. A justiça social tornou-se requisito da ética pública – uma reapropriação silenciosa do princípio fundador da “auto‐responsabilidade”: a de responder ao outro tanto quanto a si mesmo.
4. O paradoxo moral contemporâneo
Nas últimas décadas, contudo, esse equilíbrio foi novamente abalado. A globalização financeira e a retórica neoliberal ressuscitaram o mito da auto‐suficiência. A “auto‐responsabilidade” regressou, mas despojada da solidariedade. O indivíduo voltou a ser apresentado como autor exclusivo do próprio destino; o fracasso social, reinterpretado como falha pessoal.
Elon Musk e outros representantes da cultura tecnológica contemporânea chegam a associar empatia e compaixão à fraqueza civilizacional.5 Essa inversão, que enaltece a eficiência e despreza a vulnerabilidade, revela o enfraquecimento simbólico da comunidade política. A liberdade torna‐se visível apenas como poder, e a responsabilidade degenera em disciplina.
Emmanuel Lévinas oferece a mais radical oposição a essa deriva. “Sou responsável pelo outro antes mesmo de poder decidir sê‐lo.”6 Esta afirmação subverte a lógica moderna do sujeito autónomo. Para Lévinas, a ética não nasce da razão nem do contrato, mas do encontro com o outro – o momento em que o rosto humano me obriga a responder. A responsabilidade, neste sentido, é espiritual antes de ser legal.
5. A parábola do Bom Samaritano: figura do encontro
A parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25‐37) concentra esse sentido ético originário. Um homem é espancado e deixado à beira do caminho; os representantes da ortodoxia religiosa passam adiante, mas o estrangeiro marginalizado interrompe o seu percurso para cuidar do ferido. “Quem foi o próximo daquele homem?”, pergunta Jesus. A resposta é luminosa: “Aquele que teve compaixão dele.”
Nessa cena, liberdade, fé e moral reencontram-se. A verdadeira responsabilidade não é obediência a um princípio universal nem cálculo de mérito, mas resposta viva a uma presença. O Samaritano encarna uma auto‐responsabilidade que inclui o outro, um gesto de fraternidade que redefine a ética da modernidade. É nele que o humano volta a ser sagrado.
6. A ética da compaixão e a espiritualidade do humano
A filosofia de Arthur Schopenhauer antecipou esta perceção ao colocar a compaixão no centro da moral.7 Só quem é capaz de sofrer com o outro rompe o egoísmo da vontade de viver. Essa visão encontra ecos nas tradições religiosas e humanistas: a caridade cristã, a compaixão budista e o ahimsa gandhiano convergem num mesmo princípio de unidade.
Bonhoeffer dirá: “só quem grita pelos judeus pode cantar gregoriano.”8 E Gutiérrez acrescentará: “os pobres são o lugar teológico onde Deus se manifesta.”9 Lévinas, em linguagem filosófica, formula o mesmo axioma: “O rosto do outro é o lugar onde Deus passa.”10 A espiritualidade não é fuga do mundo, mas presença radical no outro. Essa é também a raiz da empatia – a dimensão onde o sagrado e o ético se reencontram.
7. A moral sem compaixão
O discurso meritocrático contemporâneo deslocou esta verdade. Ao identificar vulnerabilidade com fraqueza, transforma a empatia em obstáculo moral. Hannah Arendt antecipou esta lógica ao falar da “banalidade do mal”: quando o pensamento se separa da sensibilidade, a obediência torna-se máquina.11
Nessa moral sem compaixão, o sofrimento é visto como erro; a desigualdade, como destino natural. A virtude mede-se pela eficiência e a dignidade reduz-se à produtividade. “Responsabilidade” deixa de significar resposta ao outro e passa a designar capacidade de rendimento. O humano é instrumentalizado; o espiritual, silenciado.
8. Rumo a uma nova reconciliação
Reconstruir o sentido da responsabilidade é reencontrar a ponte perdida entre liberdade e amor. A maturidade não é isolamento, mas comunhão consciente. Emmanuel Mounier afirmou: “A pessoa realiza‐se dando‐se.”12 O personalismo retoma o fio quebrado da história moderna: o indivíduo só é verdadeiramente livre quando o reconhecimento do outro é parte da sua natureza espiritual.
A auto‐responsabilidade solidária é essa síntese reencontrada. Não se trata de negar o valor da autonomia, mas de afirmar que ela só se cumpre na relação. Ser livre é poder responder – e responder significa cuidar. Quando o cuidado desaparece, a liberdade torna‐se força e a justiça, aparência.
Hoje, resistir à moral fria do desempenho é um gesto civilizacional. Escutar o outro é um ato político. A civilização, dir-se‐ia à maneira levinasiana, mede-se não pela ordem das suas instituições, mas pela ternura dos seus gestos. A parábola do Bom Samaritano lembra-nos que o humano começa onde a pressa cede à atenção – no momento em que decidimos parar e cuidar.
A palavra “responsabilidade”, então, retoma o seu sentido completo: não castigo ou possessão, mas resposta viva ao apelo do outro. Nessa resposta, o espírito reencontra o corpo e a liberdade reencontra o seu coração humano.
Isabel Prata Coelho
10/11/2025
Notas
1. John Locke, Two Treatises of Government, Londres, 1689; John Stuart Mill, On Liberty, Londres: Parker & Son, 1859.
2. Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
3. Ver Karl Polanyi, A Grande Transformação, Lisboa: Relógio d’Água, 2000.
4. Emmanuel Mounier, O Personalismo, Lisboa: Moraes Editora, 1960.
5. Declarações de Elon Musk em entrevistas de 2022 e 2023.
6. Emmanuel Lévinas, Totalidade e Infinito, Lisboa: Edições 70, 1988.
7. Arthur Schopenhauer, Sobre o Fundamento da Moral, Lisboa: Relógio d’Água, 2012.
8. Dietrich Bonhoeffer, Resistência e Submissão: Cartas do Cárcere, Lisboa: A.O. Editora, 1995.
9. Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação: Perspectivas, Lisboa: Edições Paulinas, 1973.
10. Emmanuel Lévinas, Ética e Infinito, Lisboa: Edições 70, 1988.
11. Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, Lisboa: Relógio d’Água, 2007.
12. Emmanuel Mounier, O Personalismo, Lisboa: Moraes Editora, 1960.






